O gigante do Seridó é Patrimônio do Rio Grande do Norte
Este texto é uma homenagem a uma das pessoas mais extraordinárias que já tive o prazer de conhecer, o acariense, meu avô e meu amigo, Iung de Brito Chaves (in memoriam), e a todos que foram e são de alguma forma afetados pela seca e que hoje transbordam de felicidade ao ver o Gargalheiras sangrar.
Júlia Chaves Nunes de Carvalho
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Conservação e Sócia efetiva do IHGRN.
Próximo à completar 65 anos, o Gargalheiras fez com que o Brasil parasse para testemunhar o espetáculo magnífico e esperado de sua sangria na semana passada. Sendo um símbolo da resistência do povo seridoense às secas que afetam a região, o reservatório transbordou, trazendo consigo as emoções de milhares de sertanejos e seus familiares. Iniciada no início do século XX, a construção da barragem enfrentou vários obstáculos geográficos, tecnológicos, financeiros e políticos. Após períodos de guerras, crises econômicas e golpes políticos, em 1959, finalmente o Gargalheiras foi inaugurado, mudando a vida e economia da comunidade local. Em 2023, o Gargalheiras foi oficialmente reconhecido como Patrimônio Cultural, Histórico, Geográfico, Paisagístico, Ambiental e Turístico do Rio Grande do Norte devido à sua relevância para o estado. Por isso, este belíssimo exemplar da arquitetura é o destaque de hoje, na Quinta Potiguar.
Acari é uma cidade localizada a 215km da capital, Natal, no Rio Grande do Norte. Fundada no início do século XVII, tornou-se vila em 11 de abril de 1883, sendo a segunda cidade mais antiga do Seridó Potiguar. Atualmente, como parte do Polo de Turismo do Seridó, Acari possui um valioso patrimônio arquitetônico de importância nacional, destacando-se a Igreja Nossa Senhora do Rosário (link do texto) e o Museu Histórico de Acari (link do texto), ambos temas de textos anteriores da Quinta Potiguar. Além disso, a cidade integra o Geoparque do Seridó, uma área de reconhecimento mundial como patrimônio ecológico e científico, com quatro geossítios em seu território, sendo o Açude Gargalheiras um deles. No entanto, devido ao clima semiárido, Acari enfrenta períodos severos de seca que castigam seu povo. Por isso, desde o início do século XX, existem esforços constantes de combate a este fenômeno que visam melhorar a qualidade de vida nessas circunstâncias.
No Brasil, desde os primeiros anos da colonização, existem registros sobre o problema das secas no sertão e suas graves consequências para a população local. Foi somente no final do século XIX, com os avanços tecnológicos após a Revolução Industrial e a popularização de instituições educacionais de formação de engenheiros no Brasil, que surgiram oportunidades e corpo técnico para combater esse fenômeno. Desta forma, durante a seca que assolou o Brasil em 1877, discussões técnicas anteriores sobre o represamento de água para abastecimento e irrigação receberam investimento do país que passou a construir de açudes, barragens, canais de irrigação, poços e outras intervenções técnicas para o combate à seca, principalmente no nordeste.
Foi neste período de surgimento das primeiras ações de combate às secas que em 1908 outra grande seca afetou o sertão. Assim, líderes políticos e a população do Seridó potiguar exigiram a construção de uma barragem na região e estudos técnicos foram conduzidos em Acari no mesmo ano para analisar o clima, o solo e outras características locais. Os estudos resultaram no relatório do engenheiro Bernardo Piquet Carneiro favorável à construção de um açude público em um local cercado por serras, na ‘garganta’ do Rio Acauã, local onde atualmente está o Gargalheiras. Em 1909, foi estabelecida a primeira entidade federal de combate à seca, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), que iniciou imediatamente o desenvolvimento do projeto de construção da barragem do Açude Gargalheiras.
Em 1911, o Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas aprovou o projeto e o orçamento da construção da barragem do Açude Gargalheiras, que inicialmente teria 120 metros de extensão, 25 metros de altura e uma curvatura no raio de 104 metros, necessária para a estrutura conter as águas. No ano seguinte, cerca de 996 mil quilos de cimento foram enviados de Hamburgo, na Alemanha, para o início das obras em 1913. No entanto, a construção da barragem enfrentou vários obstáculos devido à dificuldade de conhecimento da geografia local e à tecnologia limitada da época. Além disso, a importação de cimento e outros materiais da Inglaterra se mostraram um processo extremamente burocrático e difícil.
Na sequência, com a chegada da Primeira Guerra Mundial em 1914, as trocas comerciais entre o Brasil e os países envolvidos na guerra foram totalmente interrompidas e assim, os materiais importados necessários para a construção pararam de chegar. Além disso, houve drástica diminuição das verbas nacionais para o projeto causando grande atraso nas obras que teve a fundação apenas finalizada em 1916 e posteriormente, foi abandonada. Entretanto, com o fim da guerra em 1918 e nova severa seca no Brasil em 1919, o recém eleito presidente paraibano Epitácio Pessoa aumentou o investimento nacional ao combate à seca e incentivou à construção de açudes. Assim, em 1920, o IOCS rescindiu o contrato com a antiga empreiteira do Gargalheiras e passou a administração para a empresa inglesa Charles H. Walker & Co que teria até 1930 para finalizar a obra.
A empresa inglesa, com vasta experiência na construção de barragens no nordeste, reiniciou as obras em 1920, empregando a maioria da população local como trabalhadores da obra. Neste período, ocorreu a construção de estradas carroçáveis que finalmente ligaram os municípios do Seridó com a capital potiguar. Em 1922, após novos estudos, a altura da barragem foi elevada no projeto para 41 metros de altura e as obras da barragem retomaram. Mas infelizmente, com o fim do mandato do Presidente Epitácio Pessoa, as obras foram paralisadas por falta de verbas e se mantiveram desta forma durante as décadas seguintes, onde ocorreu a Grande Crise econômica mundial de 1929, o Golpe de 1937 e a Segunda Guerra Mundial de 1939 à 1945.
Após a guerra, o IOCS, agora denominado como Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), conduziu novos estudos para a retomada da construção do Gargalheiras. Nesse período, a tecnologia para a construção de barragens estava mais avançada do que nunca, e o Brasil já produzia diversos materiais, como cimento, eliminando a burocracia de importação destes que tanto atrapalhou a construção no passado. Em 1956, com a eleição do Presidente Juscelino Kubitschek e sua campanha de desenvolvimento "50 anos em 5", houve um grande investimento estrangeiro e disponibilidade de verbas para projetos de infraestrutura, culminando na retomada das obras do Gargalheiras neste mesmo ano.
Durante a construção do Açude, foram realizadas várias outras obras, incluindo estradas, uma estação meteorológica, uma estação de rádio, um posto dos correios, telégrafos e a Vila dos Operários, que abrigava os trabalhadores, engenheiros e máquinas. Em 27 de abril de 1959, o tão aguardado Açude Gargalheiras e a Barragem Marechal Dutra foram finalmente inaugurados, situados a 4,5km do centro de Acari, com 27 metros de altura e capacidade para armazenar mais de 40 milhões de metros cúbicos de água. Quanto à arquitetura, a Barragem Marechal Dutra é uma construção de infraestrutura urbana marcante, composta por uma grande barreira curva de concreto aparente entre as serras, um túnel para manutenção interna e duas torres, sendo a mais alta chamada de torre do vigia. A presença marcante do concreto aparente em dimensões amplas destaca o estilo brutalista da construção, pertencente ao movimento arquitetônico modernista dos anos 1950, em sintonia com a época de sua construção.
Desde que foi inaugurado, o deslumbrante Gargalheiras transbordou 29 vezes, trazendo esperança para a população do Seridó. Atualmente, ele fornece água para mais de 10 mil habitantes em Acari e mais de 40 mil em Currais Novos. A última vez que transbordou foi em 2011, mas durante a década de 2010, a região enfrentou a pior seca dos últimos 100 anos. Isso resultou em níveis muito baixos de água no açude, levando ao racionamento e à interrupção do abastecimento. Em 2018, a seca foi tão intensa que cenas do filme brasileiro 'Bacurau' foram gravadas dentro da barragem seca, com a imponente parede de 27 metros como pano de fundo das filmagens.
Em 2023, a governadora Fátima Bezerra aprovou a Lei que reconhece o Gargalheiras como Patrimônio Cultural, Histórico, Geográfico, Paisagístico, Ambiental e Turístico do Rio Grande do Norte. E finalmente em 2024, o cenário árido do açude mudou significativamente devido às fortes chuvas na região e ao transbordamento de outras barragens próximas que levaram o Gargalheiras a sair de pouco mais de 1% para 100% de sua capacidade. Na noite de 3 de abril de 2024, o Brasil testemunhou o belo momento em que o gigante do Seridó transbordou. Esse evento simboliza a resiliência e renovação da região, deixando evidente a importância histórica da edificação.
O Gargalheiras é uma verdadeira preciosidade do patrimônio arquitetônico do Rio Grande do Norte. Para além de sua importância histórica e cultural, o reservatório desempenha um papel essencial no fornecimento de água na região, promovendo o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida das comunidades locais. Sua arquitetura é um atrativo para turistas de várias regiões, fascinados pela grandiosidade dessa obra de engenharia. Assim, trata-se de um patrimônio que narra a história do nosso povo e por isso merece ser preservado e valorizado. VIVA O GARGALHEIRAS!
Fontes:
ACARI/RN. Marcelo da Silva Taveira (coordenador). Prefeitura Municipal de Acari (org.). Inventário Turístico: Acari/RN. Currais Novos/RN: UFRN / FELCS, 2023. 169 p.
SIMONINI, Yuri; FERREIRA, Angela Lúcia; SILVA, Adriano Wagner. A ESCOLA “PLUVÍFERA” E AS SECAS NO NORDESTE DO BRASIL: o caso do ⠼gargalheiras⠽ (1877-1959). Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, [S.L.], v. 69, p. 1-36, 16 nov. 2020. Pontifical Catholic University of Sao Paulo (PUC-SP). http://dx.doi.org/10.23925/2176-2767.2020v69p204-239.
SILVA, Adriano Wagner da. Engenharia dos sertões nordestinos: o gargalheiras, a barragem marechal dutra e a comunidade de acari, 1909 - 1958. 2012. 190 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/16969/1/AdrianoWS_DISSERT.pdf . Acesso em: 03 de abril de 2024
RIO GRANDE DO NORTE (estado). Lei nº 11.365, de 20 de janeiro de 2023. Reconhece como patrimônio cultural, histórico, geográfico, paisagístico, ambiental e turístico do Rio Grande do Norte, a Barragem Marechal Dutra – Açude Gargalheiras. Natal, RN: Diário Oficial, 2023