Fachadas que contam a história potiguar
Júlia Chaves Nunes de Carvalho
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Conservação e Sócia efetiva do IHGRN.

Localizada no cruzamento da Rua Chile com a Travessa Argentina, a Casa Luiz de Barros tem sido objeto de discussões sobre a importância da restauração da Ribeira. Recentemente, o artista Ronkalt recriou a edificação restaurada usando Inteligência Artificial, revelando o valioso potencial do local. Apesar de estar protegido em nÃvel estadual e federal, o prédio do ex-senador potiguar Luiz de Barros encontra-se em estado crÃtico de conservação. Apenas as fachadas permanecem, mas sua arquitetura continua a encantar os moradores locais, reacendendo debates sobre a proteção do patrimônio histórico do Rio Grande do Norte. Atualmente, a famÃlia Barros está empenhada na luta pela preservação da Casa Luiz de Barros, tema de destaque na nossa Quinta Potiguar de hoje.
Até ao século XVII, Natal era principalmente composta pela Cidade Alta, com a Ribeira sendo uma área alagadiça e desabitada ao longo do Rio Potengi que servia como ligação entre a Fortaleza dos Reis Magos e o centro urbano. No entanto, a partir do século XVIII, o bairro começou a desenvolver-se gradualmente. Em 1776, já existiam registros de algumas casas de taipa concentradas nas atuais ruas Dr. Barata e Chile, que neste perÃodo se chamava Rua da Praia por margear o Rio Potengi. É relevante mencionar que os primeiros registros indicam Isabel de Barros como proprietária de algumas das primeiras casas desta rua, e apesar de não haverem evidências de um parentesco entre Isabel e Luiz de Barros, proprietário da residência, os registros mostram que a famÃlia Barros possuÃa propriedades na região desde o inÃcio da ocupação.
Em 1863, foi inaugurado o primeiro cais de Natal na antiga alfândega localizada na Rua da Praia que posteriormente ficou conhecida como Rua da Alfândega. A construção do cais impulsionou o comércio de açúcar e algodão na área, tornando a via um importante centro comercial. Casarões de estilo colonial foram erguidos para abrigar de forma mista tanto comércios quanto residências, resultando na mudança do nome da rua para Rua do Comércio. A transferência da administração provincial para o atual edifÃcio da Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão conferiu à rua também uma importância polÃtica, culminando em 1889, quando foi palco das celebrações da proclamação da República.

Neste contexto de extrema importância para Natal, encontra-se a Casa Luiz de Barros. Embora a data exata da construção seja incerta, de acordo com o inventário estima-se que tenha sido erguida entre o final do século XIX e o inÃcio do século XX, afirmação justificada com base nos elementos ecléticos em sua fachada. No entanto, após análises próprias da arquitetura da edificação, combinadas com o contexto histórico de ocupação da Rua Chile, é possÃvel encontrar evidências de que a residência provavelmente foi construÃda originalmente no estilo colonial, ou seja, seria datada de antes do perÃodo mencionado em seu inventário. A presença de elementos ecléticos em sua arquitetura pode ser justificada por um movimento que ocorreu com a chegada do estilo eclético em Natal no inÃcio do século XX, onde muitos proprietários de edificações coloniais reformaram suas casas adicionando pontuais elementos da nova arquitetura.
Essa possibilidade pode ser corroborada ao analisarmos a estrutura da casa que está localizada em um terreno estreito e profundo, construÃda de maneira geminada sem recuos laterais ou frontais e telhado com cumeeira paralela à fachada principal e duas águas, que formam um sótão na residência. Além disso, existem três portas na fachada principal voltadas para a Rua Chile, que sugerem o uso de um comércio na frente e uma residência nos fundos, uma disposição tipicamente colonial. Especificamente, a conexão entre o platibanda decorado da fachada frontal com a inclinação do telhado na fachada lateral, como indicado na imagem a seguir, demonstra que o platibanda foi provavelmente adicionado depois da construção do telhado. Todas essas caracterÃsticas arquitetônicas, juntamente com o contexto histórico da Rua Chile, sugerem a possibilidade de que a construção original da edificação ocorreu no inÃcio ou em meados do século XIX.

De qualquer forma, além da significativa importância histórica e arquitetônica, a edificação possui também importância cultural para o Rio Grande do Norte. Isso acontece por ter pertencido à Luiz de Barros, que atualmente dá o nome para a edificação. Luiz de Barros foi um industrial e comerciante atuante, além de um polÃtico influente que ocupou os cargos de vereador, deputado estadual e senador da República. Apaixonado pelo cinema, o empresário foi dono do famoso Cinema São LuÃs no bairro do Alecrim, que funcionou de meados da década de 1940 à meados da década de 1970, e do modernista Cine Nordeste, que funcionou da década de 1950 até a década de 1990. Estes cinemas tiveram grande impacto na cultura e arquitetura potiguar e são lembrados até os dias atuais.
A edificação passou pela primeira intervenção em 1994, juntamente com as demais fachadas da Rua Chile. Em 1999, a Fundação José Augusto tombou oficialmente a edificação a nÃvel estadual, reconhecendo sua importância histórica, arquitetônica e cultural para o Rio Grande do Norte. Em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e ArtÃstico Nacional também a tombou a nÃvel federal, por fazer parte do Conjunto Arquitetônico, UrbanÃstico e PaisagÃstico do MunicÃpio de Natal, que abrange parte dos bairros da Ribeira e Cidade Alta. Essa área é considerada crucial para a história social, econômica, polÃtica e urbana de Natal. Mesmo assim, apesar de sua relevância, a construção encontra-se em estado crÃtico de conservação, com a estrutura interna totalmente perdida devido à s dificuldades enfrentadas pelos proprietários para manter o edifÃcio funcionando e conservado ao longo dos anos. Atualmente apenas a bela fachada permanece, mas também apresenta diversos problemas relacionados à conservação.
Diante dessa situação, a famÃlia Barros sob a liderança do Arquiteto Luciano Barros, está buscando aprovação e viabilização do projeto de requalificação da edificação. A proposta de conversão funcional foi elaborada em 2023 por esta arquiteta que vos escreve e tem como objetivo prestar homenagem ao antigo proprietário e à história da edificação, transformando o edifÃcio em uma sala de cinema, ao mesmo tempo que mantém o respeito e o resgate à história arquitetônica da estrutura. Este projeto será o destaque do próximo artigo no Blog Júlia Chaves Arq.

Resumidamente, a preservação dessas fachadas resistentes não envolve apenas a sua estrutura fÃsica, mas também é crucial para conservar a identidade potiguar. A Casa Luiz de Barros é um exemplo essencial da nossa história que necessita de restauração urgente, a fim de continuar transmitindo a valiosa herança cultural e arquitetônica do RN para as próximas gerações. Que o movimento para alterar essa situação na qual se encontra a Ribeira atualmente ganhe força, garantindo a preservação dos nossos tesouros arquitetônicos como testemunhos vÃvidos do nosso passado e a conexão da população com eles.
FONTES:

BRASIL. Senado Federal. Senador Luiz de Barros: (fora de exercÃcio). DisponÃvel em: https://www25.senado.leg.br/web/senadores/senador/-/perfil/2041. Acesso em: 18 fev. 2024.
CASCUDO, LuÃs da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: RN econômico, 1999. 496p.
COSTA, Andrea; AMARAL, PatrÃcia. Centro Histórico de Natal: guia para turistas e moradores. Natal: IFRN, 2016. 61 p.
NESI, Jeanne Fonseca Leite. Caminhos de Natal. 2. ed. Natal: IPHAN, 2020. 125 p
Vasconcellos, Sylvio de. Arquitetura no Brasil - Sistemas construtivos. Revisão e notas: Suzy de Mello. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1979.